A Serpente e os Deuses da Terra

Paganismo galaico, mitologia atlântica e herança simbólica

“Chamavam-na Ophiussa: pois dizem que entre os seus habitantes há um povo que descende de serpentes.”
— Rufus Festus Avieno, Ora Marítima, séc. IV

No extremo ocidental da Península Ibérica, onde os montes tocam o céu e os rios rasgam caminhos até ao mar, viveu uma civilização que deixou marcas fundas na paisagem — e na memória. Não construíram templos, mas praticaram formas de culto. Sem deixar textos, transmitiram uma cosmovisão baseada na natureza, gravada em pedras, topónimos e tradições orais.

Chamamos-lhes galaicos, brácaros ou ártabros. O que se conhece destes povos vem sobretudo da arqueologia, das lendas populares e de inscrições votivas. A sua espiritualidade era animista: os deuses habitavam nos montes, nas fontes, nas encruzilhadas.

Algumas divindades identificadas incluem:

  • Nabia, associada às águas e à fertilidade
  • Bandua, divindade guerreira e tribal
  • Berobreo, ligado à saúde e aos caminhos
  • Reue, evocando a ordem e a justiça

Outros nomes sobreviveram apenas em aras votivas, muitas vezes associadas a lugares ainda hoje considerados “sagrados” pela população local.


A Serpente: símbolo ancestral da terra

O nome Ophiussa, que significa “Terra das Serpentes”, aponta para um símbolo profundamente enraizado nas culturas pré-romanas da Península Ibérica.

A serpente surge como guardiã de fontes e montes, protetora de territórios e presença constante nos mitos populares — muitas vezes sob a forma da moura encantada, figura feminina enigmática que habita grutas e protege tesouros esquecidos.

Em termos simbólicos, representa:

  • Conhecimento da terra
  • Transformação (através da muda da pele)
  • Ligação entre mundos — o visível e o invisível

Longe de ser uma criatura temida, era respeitada como símbolo de sabedoria, regeneração e continuidade cíclica com os ritmos da natureza.


Uma leitura simbólica da paisagem

Mais do que um território com interesse geográfico ou arqueológico, esta região pode ser lida como um mapa simbólico. Cada elemento natural carrega um significado arquetípico:

Elemento Significado simbólico
Monte Local elevado de observação e ritual
Fonte ou Rio Passagem interior, memória, renovação
Pedra Marco de presença, altar ancestral
Caminho Travessia, iniciação, ligação entre tempos
Serpente Ciclo vital, sabedoria telúrica, guardiã

Uma espiritualidade enraizada no território

The Land of Serpents não é um guia esotérico, nem pretende reconstituir práticas antigas. É um convite à leitura simbólica do território, com base em evidências arqueológicas e na herança mitológica local.

A proposta é simples:
→ Caminhar por lugares que foram habitados e venerados.
→ Parar junto a fontes e pedras votivas.
→ Observar o monte como lugar de ritual e vigília.
→ Permitir que a experiência desperte uma compreensão mais profunda do lugar — e da ligação ancestral entre o ser humano e a terra.

Uma Terra Anterior às Fronteiras

Gallaecia, Ophiusa e a unidade esquecida do noroeste peninsular

Entre o norte de Portugal e a Galiza não há apenas um rio.
Há uma linha geográfica que separa nos mapas — mas que une na paisagem, na língua, nas tradições, nos rituais e nas histórias partilhadas.

Muito antes de existirem fronteiras nacionais, este território era conhecido como Gallaecia: uma vasta região habitada por povos castrejos, com estruturas sociais ligadas à terra, ao culto natural e a divindades locais.
Era uma terra de montes fortificados, fontes votivas, símbolos gravados na pedra e celebrações sazonais.

Os romanos reconheceram essa unidade ao criar a província da Gallaecia, com capital em Bracara Augusta — a atual Braga. Durante séculos, o norte de Portugal e a Galiza partilharam reis, mapas e influências culturais. Após a queda do Império Romano, a região foi governada pelos Suevos, num dos primeiros reinos cristãos da Europa Ocidental.

A fragmentação surgiu mais tarde, no século XII, quando o Condado Portucalense deu origem ao Reino de Portugal, separando-se politicamente da Galiza.
Mas a linha da raia nunca foi uma muralha. Foi sempre passagem, ponte e caminho.

As relações económicas, os cultos, as romarias e até os dialetos locais mantiveram essa ligação viva — resistindo às divisões formais impostas pela história.

Um eixo simbólico

No contexto do Land of Serpents, esta memória partilhada entre Minho e Galiza não é apenas um dado histórico.
É uma chave interpretativa. Um ponto de partida para compreender o território como uma continuidade ancestral, onde as fronteiras modernas têm pouco peso.

Mais do que identidades nacionais, o que se preserva aqui é uma herança cultural e espiritual comum — visível nos castros, nos topónimos, nas festas de origem pagã e nos caminhos antigos que ainda hoje se percorrem.

Este guia percorre lugares onde essa unidade permanece inscrita na terra:
castros, rios, ilhas, fontes, romarias.
Fragmentos de um mesmo corpo ancestral — que um dia se chamou Gallaecia.
Ou, noutra tradição mais antiga, Ophiusa: a Terra das Serpentes.

O que é Ophiussa?

Entre mitos antigos e uma paisagem que ainda respira

No noroeste da Península Ibérica — na costa atlântica entre o norte de Portugal e a Galiza — encontra-se uma das regiões mais antigas e culturalmente ricas da Europa Ocidental.
É um território de montes cobertos de verde, rios largos, aldeias de pedra, fortalezas ancestrais e tradições que sobrevivem há milénios.

Hoje, essa zona está dividida entre dois países: Portugal (com a região do Minho) e Espanha (com a Galiza). Mas antes das fronteiras modernas, este território formava um só corpo cultural e espiritual. Os antigos chamavam-lhe Gallaecia. Os gregos deram-lhe outro nome: Ophiussa, a Terra das Serpentes.

A origem do nome está envolta em mistério, mas é provável que se relacione com antigas práticas simbólicas e espirituais ligadas à serpente — associada à terra, à fertilidade, à sabedoria e à regeneração.
Aqui, a serpente não era símbolo de perigo. Era guardiã de fontes e montes, presença sagrada nos limiares entre mundos.


Ecos de um mundo ancestral

Muito antes da era dos roteiros turísticos, este território era vivido de outra forma.
Era habitado pelos Galaicos, Brácaros e Ártabros — povos indígenas que deixaram castros fortificados, aras votivas gravadas na pedra e vestígios de rituais ligados à terra e aos ciclos da natureza.

Na ausência de textos escritos, a história destes povos sobrevive nas pedras que gravaram, nas tradições orais e nos nomes que ainda ecoam em topónimos e lendas.
Figuras como a moura encantada — mulher-serpente que protege segredos em grutas — são heranças desses tempos.

Ophiussa não desapareceu.
Resiste nas festas populares, nas danças circulares, nos sinos das romarias, nos caminhos de montanha e nas histórias que passam de geração em geração.

Este guia não é apenas um itinerário turístico.
É um convite à descoberta de uma memória viva, muitas vezes esquecida — mas nunca extinta.


Uma viagem pela paisagem sagrada

O Land of Serpents não propõe um circuito fechado, mas uma forma de olhar — e de estar.
Cada monte, fonte ou ruína que aqui encontras é mais do que um ponto no mapa. É parte de uma rede antiga de significados.

  • Os montes eram locais de observação, ritual e culto solar
  • As fontes eram espaços de oferenda e renovação
  • As pedras marcavam presença, protegiam e recordavam
  • As encruzilhadas simbolizavam escolhas, passagens e encontros entre mundos

A paisagem não era apenas cenário — era presença viva.
E, para quem caminha com atenção, ainda o é.

Hoje, muitos destes lugares foram transformados em património arqueológico. Mas para além das placas informativas e das ruínas catalogadas, há algo que escapa à explicação académica:
um sentimento de ligação, de reverência silenciosa, de escuta profunda.

Este guia convida-te a isso.
A parar.
A observar.
A permitir que o território te fale — não através de teorias, mas pela experiência direta.
Porque às vezes, o que sobrevive não é o que está à vista, mas o que continua a ser sentido.

Imagem: Pinterest

 

 

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