Capítulo 1 – O Bravo Coronel Perestrello

A Revolução Francesa abriu caminho para um novo pensamento político e social, desafiando as estruturas de poder que, durante séculos, haviam mantido o absolutismo e a aristocracia como pilares da sociedade europeia. As ideias de liberdade, igualdade e fraternidade atravessaram fronteiras e inflamaram a imaginação de intelectuais, militares e cidadãos comuns. Portugal, um reino tradicionalmente conservador, não escapou a este vento de mudança. Entre os que se deixaram seduzir por esta promessa de um mundo mais justo e progressista estava Inácio Perestrello Marinho Pereira, um homem que nasceu para o privilégio, mas escolheu o sacrifício.

A história de Inácio é a história de um idealista. O seu nome ficou para sempre gravado na memória da luta liberal, não apenas pelo que fez em vida, mas pelo modo trágico como morreu. Perseguido, traído e condenado por um tribunal político, encontrou a morte no cadafalso, sendo executado sob um nome que não era o seu. No entanto, se o seu corpo pereceu numa manhã chuvosa de março de 1829, a sua lenda apenas começava a nascer.

A Família e a Juventude

Inácio nasceu a 5 de outubro de 1785, na Casa das Regadas, em Ponte de Lima, um solar que há séculos pertencia à sua família. Era o filho primogénito do Tenente Francisco Manoel Perestrello Marinho Pereira e de Maria José do Carmo Cirne de Araújo e Vasconcelos. A sua linhagem era de uma respeitabilidade antiga e incontestável. Os Perestrello tinham origem em Piacenza, na Lombardia, e chegaram a Portugal no final do século XIV, acompanhando a comitiva de D. Beatriz, noiva do futuro rei D. Duarte. A família consolidou-se na corte portuguesa e viria a dar ao reino exploradores, cavaleiros e figuras de destaque na administração régia. O mais famoso de todos seria Bartolomeu Perestrelo, capitão-donatário de Porto Santo e sogro de Cristóvão Colombo.

Pela via materna, Inácio descendia dos Senhores da Casa de Sinde, os Vasconcelos de Araújo, ligados aos primeiros tempos da monarquia portuguesa. Os Marinho, por sua vez, tinham raízes numa antiga lenda medieval: dizia-se que D. Frojão, um fidalgo galego, havia casado com uma mulher marinha, dando origem à linhagem. Mito ou não, a família era real e estava bem estabelecida na nobreza minhota.

A sua posição social garantia-lhe um futuro confortável e uma carreira sem sobressaltos. Mas o destino, e sobretudo o seu próprio carácter, traçaram-lhe um caminho bem diferente.

O Chamado das Armas

Com 23 anos, Inácio ingressou na Legião Lusitana, uma força militar criada pelos britânicos em 1808 para combater os exércitos napoleónicos que ocupavam a Península Ibérica. Foi enviado para França e combateu sob bandeira estrangeira, mas pela causa portuguesa. Distinguindo-se pela coragem e capacidade estratégica, esteve presente em algumas das mais sangrentas batalhas do período napoleónico, incluindo a Batalha de Wagram (1809), onde foi agraciado com a insígnia da Legião de Honra de Napoleão.

Após a derrota definitiva do imperador francês e a paz de 1815, Inácio regressou a Portugal, trazendo consigo não apenas o prestígio militar, mas também os ideais liberais que haviam sido alimentados nos campos de batalha da Europa. Portugal, no entanto, estava longe de estar pronto para as mudanças que ele e tantos outros sonhavam.

Coimbra e a Revolução de 1820

Matriculou-se no curso de Matemática da Universidade de Coimbra entre 1820 e 1823, período em que Portugal mergulhava numa crise política. No Porto, a 24 de agosto de 1820, um grupo de militares e civis ergueu-se contra o regime absolutista, exigindo uma monarquia constitucional. A revolução rapidamente ganhou força, levando à convocação das Cortes Constituintes e à Constituição de 1822.

Foi neste contexto que Inácio revelou a sua faceta revolucionária. Em 1820, os liberais de Coimbra entregaram-lhe tropas do Regimento 22 e do Regimento de Milícias da cidade, ordenando-lhe que marchasse sobre Viseu, onde o general Vitória ainda mantinha uma posição leal ao absolutismo. A missão foi bem-sucedida, e Inácio tornou-se uma figura de confiança entre os militares liberais.

Contudo, o sonho constitucional não duraria muito. A reação conservadora foi violenta. Em 1823, D. Miguel, apoiado pelos sectores mais tradicionalistas, liderou o golpe da Vilafrancada, dissolvendo as Cortes e restaurando a monarquia absolutista. Para Inácio, foi o início do exílio.

Exílio e Regresso

Perseguido como conspirador, emigrou para Espanha, depois para Gibraltar e finalmente para França. Mas a instabilidade em Portugal persistia. Em 1826, com a morte de D. João VI, o país entrou numa nova crise sucessória. O rei deixara o trono ao seu filho D. Pedro IV, que, ao mesmo tempo, era imperador do Brasil. Para resolver o impasse, D. Pedro outorgou a Carta Constitucional de 1826 e abdicou em favor da sua filha, D. Maria II.

D. Miguel, no entanto, não aceitou esta solução e, em 1828, proclamou-se rei absoluto, iniciando um regime de terror. A repressão contra os liberais intensificou-se. Milhares foram presos, exilados ou executados. Inácio, que regressara ao país nesse ano, viu-se novamente forçado a fugir, estabelecendo-se temporariamente em Londres.

É neste momento que surge um dos documentos mais reveladores sobre o seu percurso. A correspondência entre o Visconde de Santarém e o Visconde de Asseca, datada de 3 de fevereiro de 1829, descreve Inácio como “um génio inquieto, turbulento e aventureiro”, referindo que teria embarcado em Falmouth para regressar secretamente a Portugal. A missão? “Promover a revolta nas províncias do norte, onde tem relações e alguma influência”.

Diz a carta:

“É natural que tenha saído de Lisboa trajado de almocreve ou algo semelhante, e que assim ande vagando de terra em terra.”

Mas havia outro motivo para regressar. Um que poucos historiadores registaram.

Helena Dulac: A Noiva Perdida

Na época, várias fontes mencionam que Inácio regressou ao reino não apenas pela conspiração, mas por amor. “Movido pelas saudades da noiva, a quem adorava apaixonadamente”, como refere Rocha Martins em Dramas da Liberdade.

Helena Dulac, filha de um importante oficial francês residente em Lisboa, era a mulher com quem planeava casar-se. Mas, ao desembarcar em Lisboa, o destino pregou-lhe a sua última traição.

Captura e Execução

Em janeiro de 1829, a polícia miguelista prendeu-o em Lisboa. Para proteger a identidade da sua noiva, Inácio ocultou o local de onde vinha e usou um nome falso: Joaquim Vellez. Mas o destino foi cruel. Joaquim Vellez Barreiros existia, era um oficial liberal emigrado em Brest e estava nas listas negras do regime.

Quando finalmente revelou o seu verdadeiro nome, já era tarde. O tribunal recusou-se a aceitar a correção e sentenciou-o à morte sob identidade errada. No Cais do Sodré, numa manhã cinzenta de 6 de março de 1829, foi executado.

Antes de morrer, tentou gritar as suas últimas palavras, abafadas pelos tambores:

“Morro pela liberdade, assim como para ela vivi!”

As execuções da alçada miguelista continuariam. Mas o nome de Inácio Perestrello Marinho Pereira já não poderia ser apagado.

O Iluminismo e a Revolução Francesa: O Contexto que Moldou uma Geração

O mundo onde Inácio Perestrello Marinho Pereira nasceu e cresceu estava a mudar. As bases do absolutismo estremeciam sob a força avassaladora das ideias que surgiam do Iluminismo, esse movimento que iluminou as mentes e acendeu as chamas da revolução. O século XVIII foi palco de uma transformação intelectual e política sem precedentes, onde o direito divino dos reis começava a ser questionado e os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade germinavam nos corações e nas academias.

O Iluminismo, também chamado de “Era das Luzes”, foi o ponto de viragem que definiu o destino de muitas nações, incluindo Portugal. Inspirado pelos avanços do Renascimento e da Revolução Científica, este movimento procurou substituir o dogma pela razão, a tradição pelo progresso e a autoridade absoluta pela autodeterminação dos povos. Filósofos como Voltaire, Rousseau, Locke e Montesquieu desafiaram as bases do poder estabelecido, defendendo a separação de poderes, os direitos individuais e a soberania popular.

Enquanto as ideias iluministas se espalhavam pelos salões de Paris e Londres, o mundo real dava sinais de convulsão. Em 1776, a Revolução Americana demonstrava que um povo podia libertar-se do jugo colonial e criar uma nação baseada nos princípios de representação e liberdade. Mas foi em 1789 que o impacto foi verdadeiramente sentido na Europa, quando a Revolução Francesa explodiu, transformando o Antigo Regime num amontoado de destroços.

O Declínio do Absolutismo e a Queda da Bastilha

A sociedade francesa, rigidamente dividida em três estados – clero, nobreza e o Terceiro Estado, composto pela burguesia, camponeses e trabalhadores urbanos – encontrava-se num estado de efervescência. A crise económica, agravada por guerras dispendiosas e pela incapacidade da monarquia de implementar reformas fiscais justas, criou um cenário de colapso iminente. A convocação dos Estados Gerais em 1789 pretendia encontrar soluções, mas acabou por servir de estopim para a insurreição.

A tomada da Bastilha a 14 de julho de 1789 marcou o início simbólico da Revolução Francesa. Mais do que a queda de uma fortaleza, foi a destruição de um símbolo do despotismo real. O pânico espalhou-se entre a nobreza, e a monarquia de Luís XVI entrou num processo irreversível de decadência. Em agosto desse mesmo ano, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, estabelecendo os pilares de uma nova sociedade baseada na igualdade perante a lei, na liberdade de expressão e na soberania nacional.

O Impacto da Revolução na Europa

A Revolução Francesa serviu de catalisador para um turbilhão de mudanças que reverberaram em todo o continente. A Europa absolutista reagiu com desconfiança e hostilidade, levando às Guerras Revolucionárias, onde as potências monárquicas tentaram, sem sucesso, conter a onda revolucionária. Em Portugal, o impacto foi significativo, ainda que a realeza tenha inicialmente conseguido manter a ordem. As elites ilustradas, influenciadas pelos acontecimentos franceses, começaram a questionar a legitimidade do governo absolutista e a desejar reformas políticas.

Napoleão Bonaparte emergiu do caos revolucionário, consolidando o poder e espalhando os ideais revolucionários por toda a Europa, através das suas conquistas. O modelo napoleónico de governação, que combinava elementos do antigo absolutismo com reformas inspiradas pelo Iluminismo, teve impacto duradouro. Foi neste contexto de guerra e revolução que Inácio Perestrello cresceu, sendo desde cedo exposto às ideias liberais e aos valores da liberdade.

Portugal no Olho do Furacão

Portugal, governado pelo Príncipe Regente D. João (posteriormente D. João VI), não ficou imune aos ventos revolucionários. O Reino Unido, temendo que Portugal caísse sob influência francesa, pressionou a corte a manter-se aliada aos ingleses. A recusa portuguesa em aderir ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão resultou na invasão do território luso em 1807. A família real fugiu para o Brasil, onde fundou a Corte no Rio de Janeiro, enquanto em Portugal os franceses de Junot ocupavam Lisboa.

A resistência popular e o apoio britânico levaram às Guerras Peninsulares, onde Portugal, pela primeira vez em séculos, teve de lutar pela sua soberania dentro das suas próprias fronteiras. O jovem Inácio Perestrello foi um dos muitos que pegaram em armas, alistando-se na Legião Lusitana e lutando em batalhas decisivas, como Wagram, onde seria agraciado com a Legião de Honra.

O Legado do Iluminismo

Se o Iluminismo deu voz às aspirações de liberdade, a Revolução Francesa deu-lhes corpo e movimento. Portugal, no início do século XIX, oscilava entre a resistência ao absolutismo e a adesão a uma nova ordem política baseada nos ideais revolucionários. A geração de Inácio Perestrello foi moldada por estas transformações: a queda dos velhos poderes, o despertar da consciência política e a vontade de criar um futuro baseado nos princípios de justiça e igualdade.

Ao longo da sua vida, Inácio encarnou o espírito desta nova era, desafiando o absolutismo miguelista e abraçando a causa liberal com paixão e convicção. O seu destino foi traçado por estas forças históricas, que o levariam a um fim trágico, mas imortalizá-lo-iam como um herói da liberdade.


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Capítulo X – O Regresso de Inácio Perestrello a Portugal e a Conspiração de 1829

Capítulo IX – José Ferreira Borges e a Conspiração Liberal