Capítulo III – A Legião Portuguesa: Honra e Exílio Sob a Bandeira de Napoleão

I. O Caminho Para a Guerra

A guerra não escolhe os seus combatentes. Quando as invasões francesas varreram Portugal em 1807, o país viu-se esmagado sob a sombra de Napoleão. As ordens eram claras: Portugal deveria alinhar-se com o Império Francês ou sofrer as consequências. A corte fugiu para o Brasil, deixando para trás um reino ocupado, um povo em choque e um exército abandonado à sua sorte.

Os oficiais portugueses, outrora leais à Coroa, foram agora colocados perante uma escolha impossível: resistir e enfrentar a extinção ou aceitar a mão estendida por Junot e marchar sob a águia imperial. O decreto de 18 de maio de 1808 selou o destino de milhares de soldados portugueses, forçados a integrar a Legião Portuguesa – um corpo militar criado por Napoleão para servir nos seus exércitos, longe da pátria que haviam jurado proteger.

Entre eles, um jovem cadete destacou-se. Inácio Perestrello Marinho Pereira, que já se havia formado na arte da guerra, embarcou para um destino incerto, levado pela corrente impiedosa dos acontecimentos.


II. O Exército de Napoleão e a Legião Portuguesa

A Legião Portuguesa não foi uma unidade qualquer. Criada para combater ao lado das tropas francesas, era composta por três regimentos de infantaria, um regimento de cavalaria, um batalhão de engenharia e artilharia. O seu comando foi entregue ao Marquês de Alorna, com Gomes Freire de Andrade como segundo comandante. A promessa de Napoleão era simples: os portugueses lutariam sob a sua bandeira, mas manteriam a sua identidade militar.

Para muitos, servir no exército francês era uma questão de sobrevivência. Para outros, era uma traição. Em Portugal, os que ficaram viam os legionários como colaboradores dos invasores. Mas para aqueles que partiram, a guerra era apenas uma constante, um campo onde a lealdade valia menos do que a sorte.

Após a ocupação de Portugal, a Legião foi enviada para Espanha e participou no Cerco de Saragoça (1808). De lá, seguiu para França, onde recebeu o mesmo soldo das tropas napoleónicas e passou a ser tratada como parte integrante da máquina de guerra do Império.

Em abril de 1809, a Legião recebeu novas ordens. A Europa estava em chamas, e Napoleão preparava-se para uma nova campanha contra a Áustria. O corpo de Granadeiros do General Oudinot necessitava de reforços. A Legião Portuguesa foi integrada na 13.ª Meia-Brigada, partindo para o coração da Europa, onde enfrentaria uma das batalhas mais sangrentas das Guerras Napoleónicas.


III. O Campo de Wagram: Sangue e Glória

O sol ardia sobre os campos austríacos quando, nos dias 5 e 6 de julho de 1809, os exércitos da França e da Áustria colidiram na planície de Wagram. Napoleão enfrentava um dos seus adversários mais difíceis: o Arquiduque Carlos, comandante do exército austríaco, determinado a quebrar o domínio francês.

A Batalha de Wagram foi um espetáculo de brutalidade e estratégia. O estrondo da artilharia enchia o ar, enquanto dezenas de milhares de soldados marchavam para a morte. Os portugueses, integrados no corpo de Oudinot, lançaram-se contra as trincheiras austríacas, enfrentando um inimigo feroz.

Inácio Perestrello estava lá. Com a sua unidade, avançou sob uma chuva de balas e baionetas, carregando sobre as forças inimigas com uma determinação implacável. Foi um dos momentos de maior glória da Legião Portuguesa, mas também um dos mais trágicos. Muitos caíram, corpos misturados na lama e no sangue da batalha.

No fim do segundo dia, Napoleão emergiu vitorioso. A Áustria foi forçada a recuar, e os portugueses, que haviam lutado com coragem inquestionável, foram reconhecidos pelo próprio Imperador. Muitos receberam condecorações e, entre os distinguidos, encontrava-se Inácio Perestrello. A Legião de Honra, a mais alta distinção militar francesa, foi-lhe atribuída como reconhecimento pelo seu heroísmo em combate.

Mas a glória da guerra era efémera. A guerra de Napoleão não terminava em Wagram, e a Legião Portuguesa teria ainda um caminho longo e devastador pela frente.


IV. O Inferno na Rússia e o Declínio da Legião

A invasão da Rússia, em 1812, foi um erro que custaria a Napoleão a maior parte do seu exército. A Legião Portuguesa, já debilitada por anos de combate, foi arrastada para o inferno gelado da Campanha da Rússia. Milhares de soldados marcharam para a morte entre o frio cortante e os ataques incessantes dos cossacos. Dos cerca de 9.000 homens que haviam integrado a Legião Portuguesa no seu início, apenas algumas centenas sobreviveriam.

A guerra não perdoava. Napoleão, outrora invencível, começava a perder terreno. Em 1813, a Legião Portuguesa foi formalmente dissolvida. Os soldados que restavam foram incorporados noutros regimentos franceses, enquanto outros, desgastados e esquecidos, tentavam encontrar o caminho de volta para casa.

O destino de Inácio Perestrello estava traçado. Sobrevivente de Wagram, um dos poucos oficiais portugueses a receber a Legião de Honra, voltaria a Portugal como um homem marcado pela guerra e pelo exílio. Mas a sua luta não terminaria ali.

A pátria que deixara para trás já não era a mesma. O absolutismo e o liberalismo travavam um combate interno, e o seu nome não seria bem recebido em qualquer dos lados. Para os absolutistas, era um traidor, um soldado de Napoleão. Para os liberais, era um veterano de guerra, mas também um homem que servira sob uma bandeira estrangeira.

A guerra que travara em campos distantes regressaria com força ao seu próprio país.


V. O Regresso a Portugal: Entre a Honra e a Perseguição

Quando, em 1820, a revolução liberal eclodiu em Portugal, Perestrello viu a sua oportunidade. A sua experiência militar fazia dele um ativo valioso para a causa liberal. No entanto, a memória da Legião Portuguesa ainda pairava como um fantasma. Muitos daqueles que regressaram foram recebidos com desconfiança, vistos como mercenários ao serviço do inimigo.

Mas Inácio não se deixaria silenciar. A sua lealdade era para com a liberdade e os ideais que o haviam levado à guerra. Lutaria, mais uma vez, mas desta vez pelo futuro de Portugal.

O seu nome ecoaria na história não apenas como o soldado condecorado de Napoleão, mas como o homem que desafiou a tirania em todas as suas formas.

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