Capítulo IV – Gomes Freire de Andrade: O General Traído Pelo Destino

I. O Chamado da Guerra

A guerra molda os homens. Alguns nela encontram a glória, outros a ruína, e há ainda os que se tornam lendas. Gomes Freire de Andrade pertence a este último grupo.

Nascido a 27 de janeiro de 1757, em Viena, Áustria, não era um homem comum. Filho de D. Henrique Cardoso Freire de Andrade e de D. Maria Antónia Margarida Ungnad, cresceu numa encruzilhada entre a nobreza portuguesa e o mundo sofisticado da aristocracia austríaca. O seu destino parecia traçado: seguiria a carreira militar e serviria a pátria, como os seus antepassados antes dele. Aos 15 anos, ingressou na Real Academia de Marinha, em Lisboa, e rapidamente demonstrou o engenho e a bravura que marcariam a sua vida.

Freire começou como marinheiro, mas o mar não era o seu elemento. O fogo da guerra chamava-o para terra, e foi na infantaria que encontrou a sua verdadeira vocação. Quando a guerra estalou nos Pirenéus, Portugal aliou-se à Espanha contra a França revolucionária. A Campanha do Rossilhão (1793-1795) foi o seu batismo de fogo. Foi ali que aprendeu a arte da guerra, onde conheceu a dureza do frio, o sabor metálico do sangue e o preço da vitória. Era um soldado, mas também um estratega. Os superiores notaram o seu talento e Gomes Freire subiu na hierarquia.

O mundo, no entanto, mudava. A França revolucionária alastrava como um incêndio incontrolável. Napoleão Bonaparte emergia das cinzas da anarquia e Portugal, frágil e dividido, estava à beira do abismo.


II. A Legião Portuguesa e a Guerra Sob a Bandeira de Napoleão

Quando as tropas francesas atravessaram a fronteira portuguesa em 1807, trazendo a guerra para o coração do reino, poucos estavam preparados para o que viria a seguir. O exército português foi desmantelado e absorvido pelo Império Francês. Junot, governador imposto por Napoleão, ordenou a criação da Legião Portuguesa, um corpo militar composto por soldados lusitanos ao serviço do Imperador. Freire de Andrade, um oficial de prestígio, foi chamado para liderar. A sua reputação precedia-o.

A Legião partiu para Espanha, onde participou no Cerco de Saragoça (1808). Mas a verdadeira prova de fogo viria mais tarde, nas frias e devastadoras planícies austríacas.

Em 1809, Napoleão preparava-se para uma das suas campanhas mais ambiciosas. A Áustria, renascida e determinada a travar o avanço francês, formava um dos exércitos mais bem treinados do continente. O encontro entre os dois colossos dar-se-ia em Wagram, onde o nome de Freire de Andrade ficaria gravado na história.


III. Wagram: O Campo de Batalha e a Glória

Os dias 5 e 6 de julho de 1809 foram testemunhas de um dos confrontos mais ferozes das Guerras Napoleónicas. O Arquiduque Carlos, comandante austríaco, reunira 145.000 soldados para travar a ofensiva francesa. Napoleão respondeu com 165.000 homens, entre os quais estavam os portugueses da Legião Portuguesa, integrados nas forças do Marechal Oudinot.

As forças francesas avançaram sob um inferno de tiros de artilharia. Os campos transformaram-se em labirintos de sangue e fogo. Os portugueses, sob o comando de Gomes Freire de Andrade, estavam na linha da frente. Resistiram, avançaram, combateram com a ferocidade de homens sem pátria. Sabiam que não podiam recuar.

No segundo dia, Napoleão ordenou um ataque massivo ao centro austríaco. Os portugueses carregaram com baionetas caladas, quebrando a resistência inimiga. Wagram caiu. A Áustria vergou-se à força de Bonaparte. Foi uma vitória cara – cerca de 80.000 baixas em ambos os lados – mas Napoleão conseguiu consolidar o seu domínio.

E entre os heróis de Wagram, os portugueses brilharam. Freire de Andrade foi condecorado com a Legião de Honra e os soldados da Legião Portuguesa foram elogiados pela bravura em combate. Mas a glória da guerra nunca dura. O preço da lealdade a Napoleão seria cobrado mais tarde.


IV. O Fim da Legião e o Regresso a Portugal

A sorte de Napoleão começou a mudar. O seu exército, outrora imbatível, enfrentou a sua maior provação em 1812: a Campanha da Rússia. A Legião Portuguesa foi dizimada no frio glacial, entre a neve e as chamas de Moscovo. Dos 9.000 soldados originais, apenas algumas centenas sobreviveram.

A derrota em Rússia foi apenas o início do fim. A guerra virou-se contra o Imperador. Em 1813, após a Batalha de Leipzig, Napoleão foi forçado a recuar. A Legião Portuguesa, já reduzida a um esqueleto do que fora, foi dissolvida.

Freire de Andrade viu o império que servira desmoronar-se. Com a queda de Napoleão em 1814, Portugal era agora governado pelos absolutistas. O retorno não foi fácil. Os que haviam servido em França eram vistos com desconfiança, como traidores. Mas Freire não desistiu. O seu coração era liberal. E Portugal ainda estava longe de ser livre.


V. A Conspiração de 1817: Traição e Morte

O regime absolutista de D. João VI, aliado aos ingleses, controlava Portugal com mão de ferro. O país estava sufocado. Os ideais liberais que haviam incendiado a Europa batiam contra um muro de resistência conservadora. Mas havia quem quisesse mudar isso.

Freire de Andrade tornou-se um dos líderes do movimento que procurava instaurar um governo constitucional. Reuniu-se com maçons, oficiais descontentes, intelectuais e conspiradores. O plano era derrubar o governo absolutista e instaurar a liberdade.

Mas a conspiração foi descoberta.

Na primavera de 1817, Freire de Andrade foi preso. O julgamento foi uma farsa. O regime queria um exemplo. Um aviso para todos os que ousassem desafiar o status quo. Foi condenado à morte por alta traição.

A 18 de outubro de 1817, na Fortaleza de São Julião da Barra, Gomes Freire foi enforcado. O homem que havia combatido em nome de Portugal, que havia sido condecorado por Napoleão, que sonhara um país livre, morreu como um criminoso.


VI. O Mártir da Liberdade

A sua morte não foi em vão. O sangue derramado em São Julião da Barra tornou-se um símbolo. Gomes Freire de Andrade tornou-se o primeiro mártir do liberalismo português. O seu nome ecoou nas décadas seguintes.

Três anos depois, em 1820, a Revolução Liberal do Porto finalmente derrubou o regime absolutista. O sonho pelo qual Freire morrera começava a tomar forma.

Inácio Perestrello, jovem oficial que seguira os passos do general, herdaria o seu espírito combativo. Para ele, e para tantos outros, Gomes Freire de Andrade não fora apenas um líder – fora um guia, um ideal, um homem que não se curvara perante a injustiça.

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