Mitos e Lendas de Cangas de Morrazo

Portal da Ofiússa: entre o Mar e os Mistérios

Encostada ao Atlântico, na curva da Ría de Vigo, Cangas de Morrazo não é apenas uma vila costeira — é um umbral entre mundos. Aqui, o real dobra-se ao encantamento, as vozes do feminino ancestral ecoam nas areias e nas brumas, e o invisível emerge pelas fendas da paisagem e da memória. Entre o sagrado, o trágico e o demoníaco, Cangas guarda um imaginário vivo de lendas que ressoam com a alma da Terra das Serpentes.


🔥 María Soliño, a Meiga Injustiçada

Na alvorada do século XVII, María Soliño, viúva de pescador e senhora de terras, viu sua vida ruir após o saque turco de Cangas. Sozinha, despojada e estranha ao olhar dos vizinhos, foi acusada de feitiçaria e arrastada aos tribunais da Inquisição. Torturada e expropriada, María tornou-se símbolo do medo e da misoginia institucional, das mulheres que ousaram sobreviver e foram punidas por isso.

A lenda ampliou-se: Maria, transformada em figura espectral e mítica, vaga pela Praia de Rodeira nas noites em que a lua cresce, murmurando orações esquecidas e lançando olhares sobre um tempo onde o feminino era condenado por existir em excesso.


🌕 Aquelarres na Praia de Rodeira

Sob o luar da enseada de Rodeira, dizem que meigas se reuniam para celebrar rituais noturnos, invocando forças telúricas e os antigos saberes das águas. Com cantos em galego antigo e símbolos riscados na areia, teciam feitiços de proteção, fertilidade e renovação. Hoje, o nome “Praia das Meigas” permanece entre os locais, e os viajantes atentos juram ver sinais gravados na areia ao amanhecer — vestígios de noites em que o tempo se abriu.


☠️ A Santa Compaña em Cangas

Nas ruas vazias, envoltas em névoa, desfila a Santa Compaña: procissão de almas penadas liderada por um vivo amaldiçoado. Quem a testemunha, dizem, está marcado. Só quem erguer os braços em cruz ou traçar um círculo de sal poderá escapar. Em Cangas, sussurra-se que a Compaña é mais ativa nas noites de tempestade, quando o véu entre mundos se torna transparente como vidro molhado.


🐺 O Lobishome das Encruzilhadas

Em noites de lua cheia, um homem-lobo percorre sete freguesias, espojando-se nas encruzilhadas junto aos cruzeiros. Esta criatura, metade besta e metade condenado, ataca os incautos e deixa-os febris e silenciados. A maldição só se quebra se outro humano aceitar o fardo — trocando a liberdade pelo exorcismo de uma linhagem enfeitiçada. É o mito do monstro gerado por traumas não redimidos, animal de culpa e sombra.


👹 A Cama do Demo (Aldán)

À beira da estrada de Bueu, entre árvores antigas, encontra-se a enigmática Cama do Demo. Diz-se que um demónio repousava ali nas noites de sábado, atraindo mulheres solitárias com promessas sombrias e deixava descendência maldita. A tradição adverte: evitar aquele caminho após o poente, pois as vozes que saem da pedra ainda seduzem — e o preço é sempre alto.


🪨 A Pedra da Pena e os Mouros

No monte de Coiro, a Pedra da Pena ergue-se como um obelisco encantado. A lenda fala de mouros — entidades subterrâneas, guardiões de ouro e segredos — que selaram o local com sortilégios. Quem tenta escalar a pedra por ganância é enfeitiçado: adormece por séculos ou é absorvido pela rocha. Um aviso antigo: nem tudo que brilha é para ser tomado.


🫘 O Trasgo de Cangas

Nos recantos escuros das casas antigas, vive o trasgo, um duende traquina da mitologia galaico-celta. Move móveis, derruba panelas e ri baixinho quando todos dormem. Mas tem fraquezas: se lhe deres grão-de-bico ou o distraíres com tarefas impossíveis, ficará ocupado até ao amanhecer. Os antigos diziam que o trasgo apenas entra em casas onde há algo escondido — não ouro, mas segredos.


✦ Cangas: Um Véu Entre Mundos

As lendas de Cangas de Morrazo são tecidas com vozes de mulheres caladas, sombras de peregrinos mortos, monstros da alma e espíritos que se recusam a partir. São fragmentos de um tempo em que o mundo visível não era suficiente — e o invisível, respeitado.

Aqui, onde a ría sussurra e a montanha vigia, a Terra das Serpentes revela-se como espelho do humano, com seus encantos, suas culpas e seus pactos esquecidos. Para quem ousa escutar, Cangas não é só um ponto no mapa: é um eco antigo que ainda pulsa sob os pés.

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